quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

MINISTÉRIO PÚBLICO: INTERLOCUTOR E AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL




Francisco Gérson Marques de Lima
Procurador Regional do Trabalho
Professor na Faculdade de Direito da UFC


1.       A mudança do Ministério Público
A sociedade é uma rede complexa de relações e de forças que se opõem. São forças econômicas, ideológicas, relações de poder, de trabalho etc. As instituições públicas existem para regular e viabilizar a sobrevivência e o interrelacionamento pacífico e sustentável das pessoas, como elementos da sociedade e, ao mesmo tempo, seus atores, sujeitos ativos. Sucede que as instituições públicas se mostraram insuficientes para dar conta das crescentes necessidades e dos anseios sociais. Antigamente, estas instituições se restringiam, praticamente, aos poderes constituídos, tradicionalmente reconhecidos pela Teoria do Estado, os Poderes clássicos (Executivo, Legislativo e Judiciário). O Ministério Público inseria-se no Executivo, desempenhando múltiplos papéis inerentes à defesa do Estado, muito mais do que em defesa da sociedade.  O nome histórico consagrado na União era “Procurador da República”, para designar o defensor das coisas (especialmente patrimônio e outros interesses) da União Federal, a República brasileira. Nos Estados, pontificava o simétrico “Promotor de Justiça”, com clara atuação na defesa dos interesses do Poder Público e atuação sobretudo criminal.
Com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público assumiu uma posição peculiar, na estrutura estatal, saindo do Poder Executivo e passando a ser tratado como um quarto poder. Suas atribuições tiveram de ser revistas. Então, surgiram outras instituições públicas, como a Advocacia da União e as Procuradorias estatais. Neste novo patamar, o MP assumiu o papel de legítimo defensor da sociedade, mesmo contra o Estado. A guinada, no entanto, exigiu que o MP também modificasse sua forma de pensar e de agir. Afinal, quem é destinado a defender a sociedade em si, seus grandes interesses e os valores que ela adota, deve estar muito próximo dos cidadãos, pois só assim se adquire a legitimidade social e a credibilidade das pessoas. É preciso sentir o sofrimento da sociedade e partilhar do grande sonho de uma nação igualitária, sem preconceitos, que respeita seus cidadãos e preza pela dignidade humana. Isto implica em maior simplicidade no tratamento às pessoas simples, humildes, em maior dedicação no atendimento ao povo, na presença constante na comarca, na desformalização procedimental, em desprendimento de outros poderes (com os quais foi equiparado, senão alavancado em prerrogativas, independência e autonomia) etc.
A visão do MP autoritário, do demandante nato, do grande promovedor de ações judiciais, do criador de litigiosidades jurídicas, tem sido substituída pela de MP pacificador de conflitos, articulador de movimentos sociais, de equiparação de forças entre os setores produtivos, de garantidor do regime democrático e do Estado Social (mais do que do Estado de Direito). É assim que ele ganha legitimidade, tendo uma perspectiva crítica e atuante, sem medo de agir, mas primando pela defesa dos mais fracos e promovendo a interlocução social. Para que haja qualquer diálogo decente, é necessário que os interlocutores estejam no mesmo patamar ou em condições semelhantes. Logicamente, a própria defesa dos fracos também deve ser crítica, pois a justiça de cada situação pode apontar outra direção, às vezes em detrimento da classe hipossuficiente, quando esta estiver errada.
Na realidade, a grande atuação do MP está fora do Judiciário, que já não consegue desempenhar suas funções com a qualidade e a presteza que a sociedade precisa, em razão dos inúmeros problemas que o afligem.
É preciso rearticular a sociedade, tanto para conscientizá-la de seus direitos, quanto para prepará-la, proporcionando que seus vários setores possam dialogar em condição de igualdade, abrindo canais de diálogo, forçando os grandes grupos econômicos a descerem de seu pedestal para ouvir os mais fracos, obrigando o poder público a cumprir suas funções constitucionais. Este é um trabalho de promover igualdades, diálogos e discutir as manifestações da justiça social.
O Ministério Público, hoje, deixou de ser uma instituição de mera defesa de pessoas individuais, mas, sobretudo, de defesa de massas, de grupos necessitados de direitos e de condições de dignidade. Esta atuação extrajudicial confere muito mais legitimidade e reconhecimento ao órgão do que uma ação ajuizada no Judiciário, em que a guerra de liminares avilta a segurança e o tempo para julgamento definitivo e execução esmaecem a utilidade da providência, com as respeitáveis exceções.
Mais de 20 anos após a CF/88, nem todos os membros do Parquet se conscientizaram disso e, conseqüentemente, continuaram a agir como a tradição lhes orientava. O espaço lacunoso, então, passou a ser ocupado por uma outra instituição, magnífica, que também deve ter cuidado para não cometer o mesmo equívoco, a Defensoria Pública.
Enfim, menos judiciarismos e mais atuação social. É preciso que atuemos mais próximos da sociedade, levando-lhe soluções mais rápidas e eficazes. Com as novas determinações e poderes conferidos pela CF/88, também é preciso que mudemos nossa forma de atuação. E, reconheça-se, muitos membros do MP, conscientes disso, já vêm agindo desta maneira, embora ainda não seja o bastante, porque a sociedade precisa de mais uniformidade na instituição, que é nacional.

2.       A articulação social do Ministério Público do Trabalho
De todos os ramos do Ministério Público, o Ministério Público do Trabalho (MPT) parece ser o que mais se afeiçoou ao espírito inovador da Constituição Federal de 1988, mergulhando na defesa e implementação dos direitos sociais. Mesmo sem ser compreendido inicialmente, sua metodologia de mediar conflitos, consolidar as indenizações por danos morais coletivos e assumir atitudes promocionais acabou servindo para uma maior aproximação da sociedade, o que atraiu imensa credibilidade e grande legitimidade.
Sem medo de explorar temas melindrosos, a Instituição mergulhou de cabeça para mudar seu clássico perfil de órgão parecerista para retomar a característica de órgão agente. E, numa posição ainda pouco estudada, passou a atuar como instituição que promove a justiça dialogal, dentro e, sobretudo, longe da esfera judicial. A predisposição para discutir temas e levar o trabalhador, sindicatos e outras instituições a ter senso crítico, descortinando antigas chagas, constitui traço marcante na nova personalidade institucional do Parquet.
Quando, por exemplo, o MPT “limpa” o sindicato de uma diretoria viciada, proporcionando que a categoria escolha livremente seus representantes, na verdade está devolvendo à sociedade uma importante célula de reivindicação e de equilíbrio social, além de repor uma força salutar na luta trabalhista, tendendo ao reequilíbrio entre os atores produtivos no modelo econômico. Ao propiciar que as eleições sindicais ocorram com igualdade, serenidade e transparência, devolve ao Sindicato e à categoria a democracia, um dos valores mais relevantes do Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF); daí, vem a legitimidade da diretoria, que passa a obter a representatividade pela adesão dos trabalhadores ao trabalho desempenhado.
Graças à criatividade e à atuação incessante do Parquet em investigar determinadas práticas ilegais ou abusivas de grandes grupos econômicos, resgatando por meio da indenização por danos coletivos a eficiência abalada pelas baixas multas aplicadas pelo MTE, e deste modo altera a conduta e o comportamento empresariais, fazendo respeitar direitos humanos, direitos sociais, tem-se um reconhecido ativismo ministerial. Por força desta atividade do MPT, a conduta desses grandes grupos é alterada e, assim, há uma repercussão comportamental no modelo organizacional e nos padrões locais.
O trabalho do MPT passou a ser, também, de orientação e de esclarecimento à população, o que se dá através das várias cartilhas que elabora e distribui, bem como dos congressos, seminários e audiências públicas. São eventos em que compartilha com outros organismos institucionais suas concepções, num processo de interação extremamente útil.
Para não ir muito longe nem estender demais a lista, é bastante mencionar que as ações do MPT mudaram a cultura empresarial sobre as revistas íntimas, as práticas discriminatórias no emprego, os diversos tipos de assédio no trabalho, as condições subumanas trabalhistas etc. Em tudo, registre-se o acolhimento de suas teses pela Justiça do Trabalho, outro destacado órgão na estrutura do Estado brasileiro.
O cumprimento da legislação do trabalho pelas empresas acarreta custos, que obrigam os empresários a adotarem novas formas, criativas, para permanecerem no mercado. É uma mudança comportamental, que vem a fórceps.
Mexer em chagas antigas, esquecidas ou encobertas, significa rediscutir práticas e condutas. É o que se pode dizer do combate ao trabalho escravo, que sempre existiu na sociedade, mas que sofreu formidável revés no início do século XXI, no Brasil, em face do combate corajoso de membros do MPT. A mão de obra barata foi resistida institucionalmente, o que refletiu em formalização da relação empregatícia, reinserindo trabalhadores no mercado formal de trabalho, com repercussão direta no preço final do produto ou mercadoria. O mesmo raciocínio vale para o trabalho infantil.
Quando o empresário muda seu comportamento, o consumidor é atingido imediatamente e, como é de se esperar, também altera sua conduta. Vale dizer, a sociedade sofre um impacto. E a relação de trabalho é arrastada.
Então, o MPT é um agente transformador, porque contribui para a mudança nas condutas dos atores sociais e propicia um repensar sobre antigas práticas, abrindo o diálogo para a prospecção.

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