sábado, 27 de junho de 2020

O jus resistentiae do profissional de saúde e a pandemia do Coronavírus

Marcia Araujo Gois Albuquerque Vrska
Advogada, Pós-Graduanda, membro do GRUPE

        O surto global do Coronavírus ocasiona progressivas alterações no contexto socioeconômico brasileiro, exigindo-se das autoridades a implementação de medidas de proteção e atenuação dos impactos decorrentes da disseminação da doença.


        Profissionais de saúde, sujeitos a meio ambiente laboral de alto risco e com elevada aglomeração de pacientes em estado grave, são convocados para prestar serviços, em meio à pandemia, sem que lhes sejam asseguradas condições de higiene básicas no trabalho ou ainda equipamentos de proteção individual essenciais à preservação de sua integridade física, como máscaras, aventais, luvas e demais itens previstos na Nota Técnica nº 04/2020 da ANVISA - que estabelece medidas de prevenção e controle a serem adotadas durante a assistência a casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo Covid-19.


        A falta de treinamento específico para atuação durante a pandemia e de espaço para higiene após o plantão, assim como a ausência de fornecimento, a restrição de uso ou até mesmo a necessidade de reaproveitamento de equipamentos de proteção individual, são realidades que se reiteram em inúmeros estabelecimentos médico-hospitalares. Ante o agravamento dos níveis de insalubridade, aumenta também o número de profissionais de saúde infectados pelo Corona Vírus no território nacional.


        Frente aos impactos da disseminação da pandemia no meio ambiente laboral dos trabalhadores em serviços de saúde ascende o jus resistentiae, como meio de objeção a atos ilegais e abusivos decorrentes da precariedade das condições de trabalho.


        A subordinação abrange “o dever de obediência ou o estado de dependência na conduta profissional, a sujeição às regras, orientações e normas estabelecidas pelo empregador, inerentes ao contrato, à função, desde que legais e não abusivas” (BOMFIM, Vólia. Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Método, 2017, p. 253). Via de regra, tal característica ocasiona desequilíbrio da relação, o qual precisa ser contrabalançado mediante a incidência de normas trabalhistas.


        Por seu turno, a legitimidade da resistência é progressivamente construída nos mais variados cenários históricos, quando a ilegalidade ou o autoritarismo contrapõem-se a direitos elementares, os quais, por seu caráter inalienável, merecem proteção, em respeito à dignidade de seu titular.


        Ao poder diretivo do empregador contrapõe-se o jus resistentiae do empregado, a aplicar-se nas hipóteses de sujeição a ordens que atentem contra direitos fundamentais e fujam à natureza do contratado - eivadas de ilegalidade, abusividade ou antijuridicidade.


        Nesses casos, como também naqueles em que as exigências implicarem perigo grave e iminente, a ser comprovado objetivamente pelo trabalhador, faz-se possível a recusa ao cumprimento de ordens, sem incurso em desobediência (CASTRO, Ivonne Sánchez. El derecho de resistencia del trabajador y su escasa regulación en el ordenamiento jurídico español. Fonte: Cielo Laboral. Acesso em 01/04/2020, às 00h02min, mediante link: http://www.cielolaboral.com/wp-content/uploads/2016/05/Isanchez_n5_noticias_2016.pdf).


        Assim, o dever de obediência do empregado não anula sua personalidade e não é, portanto, irrestrito, restando juridicamente protegida a resistência em situações de abuso, ocasião em que o exercício regular de tal direito não gera falta trabalhista imputável ao empregado.


   A própria jurisprudência entende que “para que reste efetivado o direito fundamental à vida (artigo 1º, III, e 5º da CF/88) devem ser viabilizados dois outros direitos fundamentais pressupostos: o direito à saúde e o direito ao trabalho (decente)” (TRT 3ª Região, RO 0011748-16.2017.5.03.0037, Órgão Julgador: Primeira Turma, Relator: Luiz Otavio Linhares Renault, Publicação: DEJT 16/08/2019, p. 456).


        O jus variandi condiciona-se ao fornecimento de condições adequadas à prestação dos serviços no meio ambiente laboral, em que não se deve vislumbrar perigo iminente e grave para a vida, integridade ou saúde daqueles que nele prestam serviços. Diante de cenário de desrespeito a normas elementares de saúde e segurança do trabalho, o direito de resistência sobressai-se ante a necessidade de proteção do trabalhador contra a utilização arbitrária do poder diretivo.


       Do reconhecimento do jus resistentiae como a prerrogativa de oposição do obreiro a determinações que lhe ocasionem sérios prejuízos, poderão advir conclusões pela configuração de dano moral, diante de abuso de direito por parte do empregador (TST, RR 447020105090041, Órgão Julgador: Terceira Turma, Relator: Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 02/05/2018, Publicação: DJT 04/05/2018), assim como o reconhecimento da legitimidade da recusa ao cumprimento de ordens ilegais ou abusivas, das quais não pode decorrer a aplicação do poder disciplinar.


       A Constituição Federal, em seus artigos 6º e 196, prevê a saúde como direito social de acesso universal, assegurando ainda, em meio aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, no inciso XXII de seu artigo 7º, “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.


     A saúde, como direito fundamental universal, deve ser assegurada a todos, inclusive aos sujeitos responsáveis pela prestação de serviços para a sua garantia. Por lei, às empresas, incumbe a obrigação de cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho (art. 157, I, CLT) e ao sistema único de saúde compete “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” (art. 200, VIII, CF/88).


     A partir do momento em que se exige a prestação de serviços, no contexto de propagação do Covid-19, sem o fornecimento de treinamento, de equipamentos de proteção e do mínimo de condições de higiene, menospreza-se a índole humana do trabalhador e malfere-se a ordem pública. Assim entende a doutrina:



[...] vindo a lume um contrato em que uma das partes se obrigara a cumprir prestação consistente em ato suscetível de acarretar-lhe, em condições anormais, risco de vida ou capaz de impor séria ofensa à saúde, tem-se a ocorrência de maltrato à ordem pública e, como consequência, a invalidade do negócio jurídico (art. 145, II, CCB). Aqui a ordem pública é ferida independente da eventual desigualdade econômica das partes, mas em razão do objeto da relação jurídica obrigacional traduzir menoscabo índole humana do indivíduo. (NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Fonte: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 37, n. 145, jan/mar 2000, p. 190).



     Nos termos do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho decidirão, conforme o caso, “de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”. Neste ensejo, diante do caráter essencial das atividades desempenhadas nos ambientes médicos e hospitalares, especialmente, no contexto de expansão da pandemia do Coronavírus, é consolidada a impossibilidade de interrupção dos serviços necessários à garantia da vida e da saúde da população em geral.


     Incumbe ao Poder Público, todavia, salvaguardar os direitos fundamentais dos profissionais de saúde, seja proferindo decisões judiciais adequadas às necessidades do momento (TRF 5ª Região – ACP 0804703-11.2020.4.05.8100, 5ª Vara Federal, Data de Julgamento: 13/04/2020, Autor: Conselho Regional de Enfermagem do Ceará - COREN/CE) e determinando a implementação de políticas públicas eficazes para a proteção daqueles que atuam, em condições de vulnerabilidade, na linha de frente do combate à pandemia (TRT 2ª Região - DC 1000819-40.2020.5.02.0000, Relatora: Sonia Maria de Oliveira Prince Rodrigues Franzini, Data de Julgamento: 27/03/2020, Suscitante: Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo), ou ainda fiscalizando e penalizando o descumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho pelos respectivos responsáveis. 


         A proteção do trabalhador, como indivíduo, é parte indissociável à preservação do sistema de saúde como um todo.




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