terça-feira, 6 de setembro de 2022

Como fica o pagamento do piso dos profissionais de enfermagem: Liminar na ADI 7222

*Por Francisco Gérson Marques de Lima
Professor, Doutor, Subprocurador-Geral do Trabalho


A Lei e a liminar concedida

A Lei nº 14.434/2022 estabeleceu o piso salarial de R$ 4.750,00 para enfermeiros, de R$ 3.325,00 para técnicos de enfermagem e de R$ 2.375,00 para auxiliares de enfermagem. Mas a Lei foi submetida a controle de constitucionalidade perante o STF, tendo o Min. Luís Roberto Barroso, em 04.09.2022, concedido liminar suspensiva para coleta de maiores informações. 

Isto foi muito bem explicado em artigo de opinião da lavra do grupeiro e advogado trabalhista Rafael Sales, publicado no endereço eletrônico https://www.excolasocial.com.br/analise-da-medida-cautelar-na-adi-7222-que-suspendeu-os-efeitos-da-lei-sobre-o-piso-dos-profissionais-da-enfermagem, de leitura recomendável.

Em sua conclusão, a Liminar está redigida assim:

"60. Diante do exposto, concedo a medida cautelar para suspender os efeitos da Lei nº 14.434/2022, até que sejam esclarecidos os seus impactos sobre:
(i) a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade. Intimem-se, para tal fim, o Ministério da Economia; os vinte e seis Estados-membros e o Distrito Federal; e a Confederação Nacional de Municípios (CNM);
(ii) a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa. Intimem-se, para tal fim, o Ministério do Trabalho e Previdência e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS);
(iii) a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos.
Intimem-se, para tal fim, o Ministério da Saúde; o Conselho Nacional de Saúde (CNS); o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems); e a Federação Brasileira de Hospitais (FBH).
61. Os intimados terão prazo de 60 (sessenta) dias para aportar aos autos os subsídios necessários à avaliação de cada um dos pontos. A medida cautelar se manterá vigente até que a questão seja reapreciada à luz dos esclarecimentos prestados.
62. Inclua-se a presente decisão para ratificação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em sessão virtual."

A decisão liminar, todavia, causou e causa ainda muitas dúvidas, provocando descompasso nas interpretações jurídicas quanto à sua aplicabilidade. Aliás, a página eletrônica referente ao andamento da ADI, no STF, apresenta, em 06.09.2022, várias petições de diversos interessados, o que reflete a dimensão da matéria e a grande repercussão que ela ostenta. 

Mas, antes de tratarmos da juridicidade, é preciso ressaltar alguns outros aspectos.

O piso mencionado foi uma grande conquista dos profissionais de enfermagem, sem dúvida. Diga-se, mesmo, que foi socialmente justo e merecido, sobretudo pelo desempenho da categoria na pandemia da covid-19, com grandes sacrifícios pessoais e familiares, além da exposição ao vírus, da sobrecarga de trabalho, das contaminações, dos adoecimentos e dos falecimentos.

Não obstante, o Ministro Luís Roberto Barroso, ao suspender a referida Lei, baseou-se em dados e informações que afirma ter chegado ao processo demonstrando o impacto de bilhões de reais na receita da Administração Pública, principalmente a municipal e a estadual, sem a clareza da origem dos recursos financeiros. No campo das instituições privadas, as informações alimentadas nos autos foi de ameaça de dispensa em massa, pela não suportabilidade dessa nova despesa, além de complicações nos planos de saúde.

Um dos documentos mencionados por Sua Excelência foi um relatório do DIEESE, órgão de assessoramento de entidades sindicais, apontando que o "incremento financeiro necessário ao cumprimento dos pisos será de R$ 4,4 bilhões ao ano para os Municípios, de R$ 1,3 bilhões ao ano para os Estados e de apenas R$ 53 milhões ao ano para a União". Esta manifestação do DIEESE parece ter conferido, na verdade, grande credibilidade formal contra a classe trabalhadora, neste ponto específico da interpretação dos indícios de prova, no juízo perfunctório da liminar. O relatório poderia ter sido compreendido de forma diferente, na medida em que indicou que as contas apresentadas por outros organismos eram muito superiores. Mas não foi.

Estas informações precisam, agora, ser pontuadas, submetidas a contraditório e esclarecidas. De preferência, urgentemente, para a análise pelo plenário virtual da Corte, onde a liminar será submetida a ratificação. No processo. Sim, as provas são processuais. Uma vez judicializada uma questão, os atos e provas são enfrentados e apreciados no processo. Quanto à ADI 7222, portanto, o caminho é agir juridicamente, dentro da sistemática processual, o que não impede o diálogo entre os envolvidos, para encontrarem solução conciliatória, nem o trabalho de convencimento dos Ministros do STF.

Pensar processualmente, no caso, é analisar se as informações já obtidas são verdadeiras, completas, legítimas. Se é possível fazer o contraponto, mostrando discrepâncias, incoerências. Apresentar outros documentos, explicar mais detidamente os impactos orçamentários e a condição econômico-financeira da Administração Pública e do setor privado. É questionar a validade de informações produzidas unilateralmente em interesse próprio e, mesmo, até que ponto será possível demonstrar os riscos de dispensas em massa de trabalhadores, especialmente em atividade essencial, indispensável à sociedade.

Outra forma de atuação dos profissionais de enfermagem é a política

Primeiro, sensibilizando as autoridades políticas do Congresso Nacional a defender a Lei que a Casa Legislativa aprovou. Nesta perspectiva, é muito louvável que o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, tenha se proposto a levar esclarecimentos ao Ministro Luís Roberto Barroso. 

Segundo, a organização da categoria, que anuncia greves, paralisações e protestos contra a decisão liminar aqui referida. Normalmente, estas manifestações, quando não sistematizadas nem muito bem pensadas estrategicamente, não surtem efeitos positivos dentro dos processos judiciais e podem ser interpretadas como desobediência civil e enfrentamento à instituição do Judiciário. Contudo, se realizadas com finalidade propositiva, não de simples resistência ou ataques ao magistrado, são por demais bem recebidas. São propositivas as manifestações que buscam sensibilizar a sociedade e as autoridades públicas, apresentando dados, indicando elementos, apontando os impactos reais da aplicação da Lei mencionada. Portanto, a atuação política e estratégica das entidades sindicais é fundamental neste momento. 

Feitas estas digressões não definitivas, analisemos a situação atual, sob o ponto de vista jurídico, isto é, da dogmática processual. 

 

Como fica o pagamento do piso, em razão da decisão Liminar

A liminar concedida na ADI 7222 atinge várias situações, que merecem ser compreendidas. Algumas instituições hospitalares estavam pagando o piso, outras ainda não e, outras, preparavam-se para fazê-lo. O Ministério do Trabalho, de sua vez, se preparava para a fiscalização no setor, mas ainda de forma incipiente. Como ficam estas situações, já que a liminar suspendeu a Lei nº 14.434/2022?

Em primeira análise, é de se entender que: 

(a) todos os pagamentos ainda não realizados continuarão sem ser pagos, ao menos no âmbito da Administração Pública, até decisão em contrário. Não fosse assim, não teria sentido nem eficácia a ordem de suspensão da Lei;
(b) quem recebeu o piso, não há porque devolver valores, pois não se devolve salário recebido de boa-fé, especialmente quando existia lei que determinava o pagamento. A Lei era válida, estava vigente e tinha que ser cumprida; e
(c) da decisão liminar em diante, o Piso não será pago pela Administração Pública, até que o STF decida a matéria, no mérito ou em revisão da liminar. Enfim, ocorrerá a suspensão do pagamento pelas entidades públicas.

Contudo, a própria decisão do Min. Luís Roberto Barroso confere tratamento diferenciado entre a Administração Pública e o setor privado. Enquanto para aquela a ordem é peremptória, de suspensão imediata dos efeitos da Lei, para as entidades particulares a decisão esclarece:

"59. Naturalmente, as instituições privadas que tiverem condições de, desde logo, arcar com os ônus do piso constante da lei impugnada, não apenas não estão impedidas de fazê-lo, como são encorajadas a assim proceder. As circunstâncias constitucionais e fiscais aqui apontadas não significam que o valor não seja justo e que as categorias beneficiadas não mereçam a remuneração mínima."

Ou seja, a partir da liminar na ADI 7222, mesmo as empresas que vinham pagando o piso podem suspendê-lo, sem que isso implique redução salarial, por se tratar de decisão judicial. Quem puder e quiser continuar pagando, não há impedimento. Como a ADI ainda será julgada no mérito, a ausência de pagamento do piso, neste momento, poderá gerar um passivo trabalhista considerável no futuro, caso ela seja improcedente. Aí, sim, será maior o risco de dispensa em massa e de dificuldades financeiras no adimplemento da obrigação trabalhista. É um risco que as empresas correrão, pois tais valores certamente serão cobrados em ações individuais ou em ações coletivas. 

Por outro lado, quanto às empresas que decidirem pagar desde logo o piso, há a possibilidade contrária, de que a ADI seja julgada procedente ao final, tendo, porém, o pagamento se consolidado, em favor dos trabalhadores, não obstante ter sido "indevido". Mas "consolidado" não significa "incorporado", pois não se trata de valores pagos permanentemente por mera liberalidade empresarial ou por força de contrato, mas por imposição de uma Lei discutida desde a sua origem. 

O Direito é bom senso, deve ser lógico e coerente. De sua vez, o Direito do Trabalho busca a equidade e a justiça social, no justo equilíbrio entre o capital e o trabalho. Os riscos estão lançados, para ambos os lados, a sugerir que soluções sejam encontradas, de preferência pelos próprios atores sociais.

Por isso, para as entidades que não pagaram de jeito nenhum, o período entre a vigência da Lei e a liminar do STF será objeto de discussão futura. Uma dessas discussões será a provocação ao STF sobre a modulação dos efeitos da decisão (art. 27 da Lei nº 9868/99), considerando a insegurança jurídica ou de excepcional interesse social. Aliás, é muito provável que o assunto seja objeto logo de Embargos de Declaração. Mas, quando se trata de pagamento de salários, em setor econômico tão diversificado (grandes hospitais, Santas Casas, pequenos hospitais que vivem de repasses do SUS...), entre situações consolidadas e outras pendentes, é muito difícil encontrar a justa medida da modulação. 

 

Negociação coletiva

Como visto, a liminar não resolveu as aflições dos trabalhadores nem as preocupações das empresas. Ainda há uma grande batalha a ser enfrentada, tanto no âmbito jurídico, processual, quanto no político, para o qual pesa, ainda, o fato de ser ano eleitoral.

Portanto, trata-se de situação muito adequada para um diálogo entre trabalhadores e empregadores, a fim de evitar estas consequências, por enquanto marcadas por incertezas. Talvez a previsão de acertos coletivos para viabilizar compensações futuras (jornadas, plantões), para o caso de a ADI ser julgada procedente e o STF retirar em definitivo a validade da lei; e a previsão de pagamentos retroativos parcelados, para a situação contrária (improcedência da ADI), com as correções apropriadas, dispensadas as multas por atraso salarial. São hipóteses de negociação, que as partes podem analisar, sem prejuízo da construção de outras soluções que lhes sejam mais convenientes e viáveis. 

Decidir a empresa, simplesmente, por pagar, não pagar ou deixar de pagar o piso é, neste momento, muito arriscado. O melhor é antever as diversas hipóteses, suas variáveis e trabalhar os vários cenários possíveis, de forma construtiva e dialogal. Um quadro que as representações de trabalhadores também não podem se descurar.

 

Fiscalização do trabalho

Neste imbróglio e enquanto vigentes os termos da liminar, o Ministério do Trabalho não poderá autuar as empresas que não estejam cumprindo a Lei nº 14.434/2022, eis que momentaneamente suspensa. Eventuais procedimentos internos, instaurados antes da liminar, não poderão chegar à fase de autuação, pois inexistente o substrato jurídico que fundamentaria a atividade fiscal.

___________________
*Pontos de destaque, na decisão liminar:

Na liminar, Luís Roberto Barroso esclareceu:
- "No caso, há evidente perigo na demora, tendo em vista a incidência imediata do piso salarial e o alegado risco à prestação dos serviços de saúde, ante a ameaça de demissões em massa e de redução da
oferta de leitos hospitalares." (pág. 26, tópico 56).

- "Sendo assim, afigura-se indispensável a suspensão da lei até que sejam avaliados os impactos da alteração por ela promovida" (...) " "(ii) a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de
demissões em massa (CF, art. 170, VIII)" (págs. 26-27, tópico 57).

- "Naturalmente, as instituições privadas que tiverem condições de, desde logo, arcar com os ônus do piso constante da lei impugnada, não apenas não estão impedidas de fazê-lo, como são encorajadas a assim proceder. As circunstâncias constitucionais e fiscais aqui apontadas não significam que o valor não seja justo e que as categorias beneficiadas não mereçam a remuneração mínima." (pág. 27, tópico 59).

- "A medida cautelar se manterá vigente até que a questão seja reapreciada à luz dos esclarecimentos prestados." (pág. 28, tópico 60).

- "Inclua-se a presente decisão para ratificação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em sessão virtual." (pág. 28, tópico 62).

Link ADI 7222: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6455667

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