domingo, 21 de agosto de 2011

Artigo 'EMPREGADOS DOMÉSTICOS E A ESCRAVIDÃO'


O artigo seguinte foi escrito pelo mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP, Fernando Basto Ferraz, que atualmente é professor em regime de dedicação exclusiva da Universidade Federal do Ceará, exercendo as funções de Coordenador de Graduação do Curso de Direito e lecionando disciplinas de Graduação em Direito Público, Pós-graduação e do Curso Mestrado em Direito. Coordena também diversas atividades de extensão, entre elas o Núcleo Interdisciplinar em Direito e Sétima Arte (NIDESA), o Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura (NIDIL) e o Projeto Inclusão Social na Maturidade (PRISMA). Participa, ainda, do Projeto PROCAD/UFC/UFSC/UNIVALI sobre a UNASUL. Leia o artigo na íntegra clicando no link a seguir.


EMPREGADOS DOMÉSTICOS E A ESCRAVIDÃO
Fernando Basto Ferraz (*)
Na antiguidade e na Idade Média não havia o contrato de trabalho doméstico. Havia o escravo ou o servo para exercer essa função. O patrão só tinha de mantê-lo, para que não morresse.[1]
Juan Beraldo de Quirós observa que, no direito moderno, “El trabajo doméstico fue la primera actividad asalariada que motivo-una regulación expresa, si bien poco beneficiosa, a la parte débil y necessitada. Casi todos los Códigos Civiles, seguiendoel ejemplo del Napoleónico, al estructurar el arrendamiento de servicios, que pasó luego a ser contrato de trabajo que se referían al doméstico, pero influenciados por el más puro individualismo burgués...”[2]
Historicamente, no Brasil, o empregado doméstico “filtrou-se através dos tempos, oriundo, ao que tudo parece, da aia ou da mucama das senhoras de engenho, visceralmente ungidas aos poderosos na terra.”[3]
Este vínculo com o passado escravocrata tem pesado, de forma expressiva, ainda em nossos dias, quando da análise dos direitos assegurados aos domésticos.
Nem o Governo havia conseguido, de todo, minorar esta situação com a Lei n. 5.859/72, que dispões sobre a profissão de empregado doméstico e dá outras providências. Afinal, como enfatiza José Alberto Couto Maciel, “a vontade do Governo, como representante da sociedade, politicamente esbarra na própria vontade da sociedade que representa, daí ser difícil preponderar os direitos dos domésticos na forma e de acordo com a igualdade preconizada na Constituição Federal”.[4]
Comparando com as conquista já asseguradas pela Lei n. 5.859/72, de férias anuais remuneradas de 20 (vinte) dias úteis, após cada período de 12 (doze) meses de trabalho, prestado à mesma pessoa ou família, além de serem segurados obrigatórios à Previdência Social, as inovações que vieram ampliar os direitos dos domésticos através do art. 7º, parágrafo único, da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, estão basicamente o salário mínimo obrigatório, no chamado décimo terceiro salário, que até então não era obrigatório por lei, ao repouso semanal remunerado, preferentemente aos domingos, e ao aviso prévio. Aos poucos, a distância legal que os separavam dos demais trabalhadores vem diminuindo. Já é facultada a inclusão do empregado doméstico no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, de que trata a Lei n. 8.036, de 11 de maio de 1990, mediante requerimento do empregador na forma de regulamento[5]. Como se trata de uma faculdade atribuída ao empregador, resta verificar, com o tempo, a extensão da aplicação desse direito.
Quando a Constituinte decidiu que os empregados domésticos teriam esses direitos previstos no parágrafo único do art. 7º da nossa Carta Magna de 1988, “fizeram com que aflorasse em boa parte dos brasileiros o seu lado mais conservador, aquele que divide os direitos e deveres de uma relação profissional com o auxílio de uma matemática particular, que reserva para si os direitos deixando os deveres por conta dos empregados... Em casa, defendem uma estranha teoria da honestidade, segundo a qual pagam baixos salários por que ganham pouco, mas fazem saber às domésticas que estão desembolsando o máximo que podem.”[6]
Em defesa desses interesses, dispositivos legais são invocados para, no que diz respeito ao doméstico, driblar o espírito da Constituição de 1988 em vigor, com o artigo 82 da CLT, que prevê, nos casos em que o empregador fornecer in natura parcela(s) do salário mínimo, ao doméstico “o salário mínimo pago em dinheiro não será inferior a 30% (trinta por cento) do salário mínimo fixado para a região, zona ou subzona (atualmente região ou sub-região). Ou seja, artifício jurídico ainda possibilita descontos mensais de 70% do salário devido ao empregado doméstico.
Com o surgimento da Lei n. 8.212, de 24.7.1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui o Plano de Custeio, e dá outras providências, a contribuição do segurado empregado, inclusive o doméstico, e do trabalhador avulso, passou a ser calculado mediante a aplicação da correspondente alíquota, prevista no art. 20 desta lei, de forma não cumulativa, observando a tabela mensal de salário-de-contribuição divulgada pelo Ministério da Previdência Social, no percentual de 8%, 9% ou 11%, conforme seu salário contratual.
A contribuição do empregador doméstico é de 12% (doze por cento) do salário-de-contribuição do empregado doméstico a seu serviço (art. 24). O empregador doméstico está obrigado a arrecadar a contribuição do segurado empregado a seu serviço e reconhecê-la, assim como a parcela a seu cargo, até o 15º (décimo quinto) dia útil do mês seguinte àquele a que as contribuições se referirem (art. 30, III, V, da mesma lei).
Para Edson de Arruda Câmara, a Constituinte de 1988 “transformou a dona de casa em empresária – empresária sem lucro, numa construção teratológica – que não suportará, em seu domicílio a presença de uma serviçal tão cheia de direitos que colocarão em risco permanente a estabilidade econômica da família.”[7]
Na verdade, os constituintes, corajosamente, enfrentando o preconceito e a discriminação históricos existentes neste país, deram um grande passo no sentido de resgatar da marginalidade o trabalho que é prestado pelos domésticos e os libertou dos grilhões da escravidão longínqua, dando-lhes dignidade à sua profissão. É compreensível, portanto, a reação negativa diante desses direitos, proveniente de parcela significativa da sociedade brasileira, acostumada de contar com o trabalho diuturno desses trabalhadores, no anonimato de seus lares, a custos reduzidos, como item indispensável assegurador de seu conforto e bem-estar.
É possível que ainda perdure por um longo no Brasil o número de empregados domésticos sem carteira de trabalho assinada, até que esses trabalhadores tomem consciência, de que a Constituição Federal, em vigor desde 1988, também lhes assegura direitos, sobretudo aqueles inerentes à cidadania, garantidores de status da condição de ser humano, como valor espiritual e moral inerente à pessoa. Enfim, que neste País “homens e mulheres são iguais em direito e obrigações” (art. 5º, I, CF/88), mesmo que para os domésticos não baste, pelas razões históricas de preconceitos e discriminação de que ainda são vítimas, igualdade perante a lei. É necessário que esta igualdade se manifeste na lei. Daí advém todo o esforço neste sentido demonstrado, a duras penas, por nossos legisladores.
A propósito, Jorge Miranda observa que igualdade perante a lei não é igualdade exterior à lei. É, antes de tudo, igualdade na lei. Tem por destinatários, desde logo, os próprios órgãos de criação do Direito.[8]
Rui Barbosa, nos Comentários à Constituição Federal de 1891, afirmou que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou desigualmente com igualdade, seria desigualdade flagrante, não igualdade real.”[9]
Conforme bem acentua Pontes de Miranda, a lei igual para entes desiguais (física ou economicamente) é uma ignomínia, porque coloca fortes e fracos, ricos e pobres, sábios e ignorantes, no mesmo plano legal.”[10]
A distinção dada aos domésticos pela Constituição em vigor, em detrimento das demais categorias, tem, desse modo, razão de ser, pela necessidade de se desvincular a impressão ainda generalizada em muitas regiões deste país continental, embora nem sempre explícita, de que “empregada doméstica” ainda se confunde com “escrava doméstica”.


(*) Fernando Ferraz é advogado graduado pela UFC, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Atualmente é professor em regime de dedicação exclusiva da Universidade Federal do Ceará, exercendo as funções de Coordenador de Graduação do Curso de Direito - UFC, onde leciona disciplinas de Graduação em Direito Público, Pós-graduação e do Curso Mestrado em Direito. Coordena diversas atividades de extensão, entre elas o Núcleo Interdisciplinar em Direito e Sétima Arte (NIDESA), o Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura (NIDIL) e o Projeto Inclusão Social na Maturidade (PRISMA). Além disso, participa do Projeto PROCAD/UFC/UFSC/UNIVALI sobre a UNASUL. Leciona atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho, Teoria do Estado, Constituição Federal de 1988 e Direitos Sociais.
[1] Pontes de Miranda. “Tratado de Direito Privado”. Parte Especial. Tomo XLVIII. Rio de Janeiro. Editor Borsoi, 1965, p. 89.
[2] “El trabajo doméstico en la legislación comparada”, Revista Derecho del Trabajo, 1944, p. 55, apud De Luca, Carlos Moreira, “Contrato de Emprego Doméstico”. Revista Direito do Trabalho, RT, Março/Abril de 1982, Ano 7, p. 9.
[3] Barros, Platão. “Aspectos do Regime de Férias do Empregado Doméstico”, in Revista do TRT da 8ª Região, V. 15, n. 28, jan/jun 1982, p. 97.
[4] “O Progresso atual e o contrato de trabalho do empregado doméstico”, São Paulo, LTr, 1978, p. 13 (Maciel refere-se à Constituição de 1967).
[5] Art. 3º-A, da Lei n. 5.859, de 11.12.1972, incluído pela Lei n. 10.208, de 23.3.2001.
[6] Domingues, Nadeje. “A lei e o pano de prato”. Ponto de Vista. Revista VEJA, 4 de janeiro de 1999, p. 86.
[7] “Os direitos dos domésticos e a Constituição de 1988”. Ponto de Vista. Jornal Trabalhista. Brasília, 26 de setembro de 1988, pp.630 – 631.
[8] “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV – Direitos Fundamentais, 2ª ed., Coimbra Editora, 1998, p. 221.
[9] In Jacques, Paulino. “Da Igualdade Perante a Lei (Fundamento, conceito e conteúdo)”, 2ª edição, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1957, p. 162.
[10] Idem, p. 167.

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